“Miséria é fartura”: lições da África do Sul

“Miséria é fartura”: lições da África do Sul

Em que direção os auxílios governamentais estão empurrando nosso país? Sabemos muito bem como essa pergunta causa mal-estar. Os auxílios tornaram-se intocáveis. Por medo, por convicção, pelo que for, todos concordam com eles. O assunto é blindado até mesmo por certo moralismo emotivo. Contestar seria egoísmo, elitismo e esnobismo, entre tantos outros “ismos”. E foi assim que os auxílios se tornaram nossa mais alta moeda política: defender soa bem, debater gera riscos — e todos querem sinalizar virtude defendendo. Mas o debate precisa ser feito: ele diz respeito ao destino desta nação, ou do pouco que restou dela.

Como bem sabemos, costumamos iniciar debates desse tipo nos comparando a outros países. É uma prática comum quando tentamos antever nosso destino. Em outros tempos, as comparações diziam respeito às nossas esperanças. Falávamos de França, de Inglaterra, de Estados Unidos. Hoje, as comparações parecem remeter muito mais aos nosso desesperos. Se dizemos de liberdades, evocamos a Coréia do Norte; se falamos do crime, mencionamos a Colômbia; se conversamos de economia, avistamos a Venezuela; se abordamos condições de trabalho, lembramos a Índia.

Ora, quando o assunto são auxílios governamentais, a comparação certeira é com a África do Sul. A situação ali se tornou periclitante. Segundo o South African Social Security Agenty (SASSA), entre 2023 e 2024, foram 28 milhões de pessoas em programas de assistência social, contra apenas 7,4 milhões de pessoas pagando impostos. O relato alertava que a situação tendia a piorar, com cada vez menos gente pagando e cada vez mais gente recebendo. Tudo isso em um país que já enfrenta problemas demais com pobreza, insalubridade, improdutividade, insegurança.

Pela lógica, é muito possível associar os problemas sul-africanos aos auxílios. É uma situação que perpetua a si mesma. O número de auxiliados aumenta. Com isso, são cada vez menos trabalhadores. O peso dos impostos esmaga os poucos que ainda trabalham. Isso pressiona a mão-de-obra qualificada a emigrar. A falta de qualificação deteriora a prestação de serviços como água, luz, Internet. A miséria e a disfuncionalidade se espraiam. A solução proposta, claro, são mais auxílios. É como um médico que administra um remédio, constata piora e conclui que a solução nunca é tentar outro remédio, mas sempre aumentar a dose.

Reverter essa queda em espiral pode beirar o impossível. Em suas lições políticas, autores como Bertrand de Jouveneu lembram que a tendência de poder é a de somente crescer. Algo semelhante ocorre aos auxílios governamentais. Eles quase nunca retrocedem; fazer isso exigiria enorme empenho político; e alcançar esse empenho pode ser difícil. Quando se fala de auxílios, não importando o lado partidário, todos são populistas. Questioná-los está fora de pauta. Fazer isso gera custos políticos demais. Até mesmo a mera sugestão de restringi-los pode sentenciar uma carreira política ao ostracismo. Ademais, os custos econômicos também seriam pesados. A nação que experimenta viver de auxílio dificilmente consegue deixar o vício.

Existe uma chance de que os problemas sul-africanos tornarem-se brasileiros. O Brasil segue pela mesma direção. Dados de 2023 do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) apontam que treze estados brasileiros possuem mais gente recebendo auxílios do que trabalhadores formais. O número aumentou desde 2022, quando eram doze. Estudos de instituições como a FGV insistem que o aumento dos auxílios não acanharam a busca por empregos formais. Ironicamente, estudos da mesma FGV também demonstram que falta mão-de-obra no país, mas não faltam empregos. O caso sul-africano nos obriga a admitir que os resultados estão de alguma forma conectados. Os auxílios não explicam todo esse contexto, mas talvez expliquem uma parte nevrálgica dele.

Ainda pela lógica, os custos do auxílio parecem maiores do que os benefícios. Diriam que os auxílios são capazes de aliviar a pobreza emergencial. Pode ser; mas também arriscam a perpetuá-la, porque desestimulam a busca por mais renda. Diriam também que os auxílios não são a causa de problemas como os sul-africanos. Talvez não; mas com certeza os consolida ou os amplia. Diriam ainda que não se pode associar de forma definitiva os auxílios àqueles problemas. É verdade; mas nem por isso devemos ignorar o risco de que a associação exista. O caso sul-africano não traz dados conclusivos, mas reforça a impressão de que os debates continuam necessários e urgentes.

A África do Sul parece indicar o que ocorre quando a nação desiste de buscar riqueza e aprende a fazer da pobreza seu maior capital político. A situação até mesmo inspira um slogan do duplipensar orwelliano: “miséria é fartura”. Quanto mais pobreza, mais auxílio; quanto mais auxílio, mais pobreza — e tudo isso é riqueza. Por um lado, é verdade que não podemos dizer de forma definitiva que os auxílios são deletérios. Por outro, é também verdade que o contexto sul-africano nos obriga a revisitar os receios que os auxílios ainda causam. De qualquer forma, fica fácil concordar com aquela opinião de um usuário de redes sociais que preferia ficar no anonimato. Dizia ele para ficarmos todos tranqüilos, porque o Brasil não vai virar Venezuela: nosso destino é ser África do Sul.

(Imagem: gerada por IA / Google)